sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Aos poucos – porque foi um processo longo até eu notar como tudo aconteceu - tive que ir arrumando espaço pra que você crescesse livremente dentro de mim. Fui tirando coisas minhas para que você ficasse a vontade, se sentisse em casa. Reformei milhões de coisas que já estavam indo para o lixo e coisas destruídas pelo tempo. Arrumei um lugar confortável para você dormir e ficar o tempo que quisesse. Você continuou a crescer de um jeito espantoso - quando me vi já estava abrindo as janelas, as portas, os portões, jogando fora as coisas que ficavam no caminho só para que eu pudesse te deixar demasiadamente bem dentro de mim. Você atingiu um tamanho proporcional a minha vontade de continuar arrumando lugares para que você permanecesse comigo. Por um tempo isso não me incomodou, sua presença me enchia de punhados de novidades e cores. E você crescia, crescia e crescia mais. Aos poucos derrubei as paredes, limpei o terreno, arranquei o telhado.

Foi então que chegou no ponto em que a situação se tornou um acumulado de excessos, onde eu não podia mais me mexer ou caminhar sem dar de cara com sua grandiosa realidade. Você tomou todo o espaço para você, pouco a pouco, sem eu perceber. Nunca cogitei a possibilidade de que você fosse crescer dentro de mim desse jeito louco e assustador. Você ter atingido essa forma acabou por anular milhões de detalhes: sumiu com os riscos do piso de madeira, com o desgastado, com as paredes sujas, com as cortinas emboloradas e com o velho tapete azul marinho. Expandiu-se também sobre a decoração bem feita: os azulejos brilhantes, os vasinhos pintados a mão, os vinis espanhóis, os móveis que vieram do sul, o aquário de água azul piscina. Atingiu praticamente o tamanho máximo – nunca soube se você quis ou se eu que fiz você crescer assim – só sei que não dava mais para deixar que isso continuasse a acontecer. Quando percebi – embora cegamente - que aos poucos eu sumia completamente por entre seu encanto gigantesco que invadia tudo, me apavorei. No primeiro momento tentei te expulsar, te mandar embora, para que eu voltasse a respirar, a ter o ar puro quando me fosse necessário. Quando parei pra reparar estava tudo demolido, não havia um tijolo inteiro ou uma célula minha em que você não tivesse imprimido sua existência, tudo tinha desmoronado, eu era um terreno completamente descampado, e você continuava ali, você não ia embora mesmo com as milhões de tentativas pra fazer você desaparecer de mim.
Sem mais alternativas tive que ir te podando aos poucos, cortando um pedaço aqui, um pedaço ali, até você atingir um tamanho que não me incomodasse – foi difícil até eu parar de sentir dor por te cortar e aprender que era capaz de fazer isso.
Finalmente reconstruí tudo, recoloquei os livros na prateleira e o rádio retrô na estante, ergui e pintei novas paredes, comprei novos tecidos, espalhei minhas pequenas epifanias pelos cantos, escrevi com tinta néon minhas frases preferidas, coloquei pra tocar os mais belos discos.
Hoje ainda deixo você viver aqui, em um lugarzinho só para você, mas quando ousa crescer um milímetro sequer eu já te corto e te aparo os exageros, assim você não me sufoca, não destrói mais nada aqui por dentro. Hoje eu aprendi a te controlar e principalmente a viver com o espaço suficientemente vazio e confortável que ficou quando você voltou a ser apenas uma sementinha. Amanhã não sei, trago outra dessas coisas e deixo crescer até o tamanho que se deve crescer, ou sei lá, deixo insuspeitavelmente que acabe com tudo novamente, só pra poder arrancar o telhado outra vez e assim ver o céu com seu amontoado de estrelas a me mostrar que viver sem se reconstruir é completa estagnação – ilusão - enganação. Hoje dou mais valor para a liberdade mas continuo acreditando que ninguém sobrevive sozinho, quem sabe um dia eu volte a ser habitavelmente sufocada – por você, por mim ou por quem o destino me trouxer. A minha única certeza é que por tudo ter sido exatamente como foi é que te deixo aqui, permanente em mim, como forma de agradecimento por ter me feito crescer tão livremente e intensamente junto contigo.
 
C.F.A

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